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Opressão: "O Crush Perfeito", da Netflix, é um desserviço aos solteiros

Soltos S.A.

29/07/2020 04h00

 

A premissa dessa série é bem interessante: um solteiro tem cinco encontros às cegas no mesmo restaurante com cinco pessoas de perfis diferentes. Acompanhamos o desenrolar das conversas ao longo da noite até o taxi da volta pra casa, mas só um deles será convidado para um encontro no dia seguinte. Até aí, tudo bem. Essa série já teve duas temporadas produzidas na Netflix americana e foram super legais. Mas quando comecei a assistir à produção brasileira (assista ao trailer), uma série de situações começaram a me incomodar ao longo do programa e foi ficando cada vez mais evidente como a nossa versão, diferente da gringa, estava recheada de gordofobia, homofobia e racismo.

O erro começa pela tradução do nome do programa. Do original "Dating Around" que poderia ser traduzido como "tendo encontros por aí" (eu sei que não ficou sexy, mas os tradutores que lutem!) passamos pra "o crush perfeito". Uma mudança crucial, porque no Brasil o solteiro que tem os cinco encontros é definido como uma pessoa "perfeita" que nunca consegue achar alguém que o encante o suficiente. Isso inclusive é reforçado no início do programa, quando amigos descrevem o personagem principal e aparecem coisas como "meu amigo gato que para o trânsito e a gente fica na rebarba". Ou seja, enquanto na versão americana os personagens principais são pessoas comuns descritas como "ele é o cara mais legal do mundo mas ninguém valoriza isso hoje", em busca de pessoas comuns, aqui assistimos praticamente a um baile da Cinderela onde os cinco candidatos tentam disputar a atenção do príncipe encantado e conseguir entrar no almejado sapatinho de cristal que leva ao segundo date. Mas pra além dessa lógica problemática, a seleção dos tais "príncipes" foi o maior equívoco. 

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Defina "crush perfeito"

Dá um look nos crushes definidos como "perfeitos" e veja se eles têm algo em comum: 

Participantes de "O Crush Perfeito" Netflix -Reprodução Instagram

Todos brancos, jovens, magros –  inclusive 3 deles loiros ou ruivos. Estamos em 2020 e acho que não preciso falar pra ninguém sobre a importância de desconstruir esse padrão ideal de beleza que só oprime um país que é 51% negro ou pardo. É muito nocivo pra saúde mental de quem está assistindo e absorve inconscientemente que só esses tipos de beleza merecem entrar na classe dos desejáveis. O programa até ganha alguns pontos ao trazer dois episódios de encontros homoafetivos que ajudam a quebrar preconceitos e tabus, mas ainda deixa as questões raciais e de padrão estético em segundo lugar. Não tô aqui dizendo que tem algo de errado com os participantes, só criticando a falta de representatividade das muitas belezas, principalmente no lugar de "crush perfeito" dentro do programa. 

Começa ok, mas depois…

O primeiro episódio até tem um plot twist. A personagem principal é Helena, uma paulista branca, loira e toda sarada que se encontra com cinco caras brancos e magros. Apesar dos papos rasos e da estética do casting à la novela das 9 anos 2000, esse episódio me surpreendeu bastante (alerta spoiler) porque o candidato escolhido para o encontro no dia seguinte foi um homem trans. Pra mim esse foi o ponto alto da série. Fiquei impactado e segui assistindo. 

Nem parece gay

O segundo episódio me doeu bastante porque sou gay e vi todas as opressões que acontecem dentro da comunidade operando na frente dos meus olhos. Selecionaram Dieter como o crush perfeito. Ele é loiro, alto, de olhos azuis, tatuado e inclusive trabalha como modelo. Ou seja, o típico 0,1% da população. Aliás, um dos candidatos diz que ele parece o "príncipe da Bela Adormecida". Uma amiga o descreve no início do programa assim: "Ele gosta de caras altos, tem que ter um porte físico de alguém que se cuida, é praticamente como se quisesse uma cópia dele" (recomendo análise urgente pro gatão!). 

Tem dois momentos desse episódio que me chocaram bastante porque trazem dois temas importantes e que se chocam diretamente com quem selecionaram para ser "o perfeito". Dieter, que é claramente descendente de alemães, está jantando com Guilherme, que é negro, e em algum momento conversam sobre origens familiares. Guilherme diz  "tem muito essa coisa de família italiana, a gente que é afrodescendente não sabe da nossa origem… a nossa história começa com a escravidão". Não é à toa que o padrão de beleza brasileiro é racista. Não é à toa que não há NENHUM negro entre os "crushes perfeitos" da série. 

E em outro momento do episódio, Alexandre, que também janta com Dieter diz "eu tenho muito orgulho de alguém me achar afeminado, porque a gay afeminada é que toma na cara todo dia pra gay padrãozinho bonita (apontando pra Dieter) poder andar de mão dada com namorado na [Avenida] Paulista". Aqui fica claro o lugar de privilégio de Dieter, que é branco e não é afeminado. Ele inclusive responde (em ambos os casos) que é consciente desses privilégios. Colocar Dieter e Alexandre juntos é o retrato perfeito da homofobia intrínseca no gosto brasileiro, onde para ser "perfeito" você ATÉ pode ser gay, mas desde que não seja afeminado. E pasmem (outro spoiler), Dieter não seleciona NENHUM candidato para o encontro no dia seguinte. Não sei se dói aí, mas pra mim toda essa situação só reforça uma construção histórica que estamos lutando diariamente pra desconstruir e que gera muita violência pra muita gente. Não dá pra passar pano.

A diversidade mandou um beijo

Confesso que depois do segundo episódio, me deu bode dessa série e pulei logo pro último. Nele, Paulo, que é um paulistano banco, de uns 40 anos, separado e bem-sucedido, encontra 5 candidatas. Um amigo descreve o gosto dele como "gosta daquela mulher que domina a cena, que ele vai ter orgulho de ter do lado dele". Só aqui já daria pra falar sobre objetificação feminina… mas sigamos nosso papo sobre padrão. Paulo encontra 4 candidatas brancas, altas e magras (sendo duas loiras e uma ruiva) e 1 candidata negra, baixa e gorda. E adivinhem o que aconteceu?  Paulo tentou beijar e pegar o telefone de TODAS as mulheres que levou pro after (ele tinha dispensado uma das candidatas) menos de Marina, que não ganhou NEM UM beijo no rosto. Paulo nem sequer se aproximou fisicamente dela em nenhum momento da noite. Você não acha isso cruel?
Não sei se tô chato, mas acho que a gente não precisa mais de programas que reforcem esses padrões estéticos e que nos transmitam o padrão de quem é desejável e quem não é. Será que é tão difícil assim aceitar que pessoas gordas ou que negros são tão desejáveis como qualquer outra pessoa? É Netflix… errou rude, errou feio! E isso não é brincadeira nem mimimi: nós, no soltos sa, escutamos diariamente a dor dos solteiros e sabemos o estrago na autoestima que os padrões estéticos causam. Vamos ficar atentos e rejeitar qualquer tipo de conteúdo que reforce preconceitos e opressões estéticas. Tá na hora de jogar os padrões pela janela e ter encontros e crushes cada vez mais imperfeitos e verdadeiros.

Sobre os autores

Piranhas românticas, André e Carol são experts em solteirice e partidários do afeto mesmo nas relações casuais. Carol está solteira há 6 anos e já não troca a aula de hot yoga por um date mais ou menos. André está solto monogâmico mas já se esbaldou muito na vida de contatinhos. Publicitários e roteiristas, trabalham com comportamento e conteúdo há anos e decidiram se aprofundar no tema que é assunto da manicure à terapia: como se relacionar hoje em dia. Comunicadores, puxam assunto até com o poste e são formados como psicólogos de boteco. Há um ano eles conversam com todo tipo de solteiros e especialistas no soltos s.a. um canal de youtube, instagram e, agora blog, pra explorar as dores e delícias dessa vida solta. Ninguém entende de solteirice como eles: já foram convidados pra falar na Casa TPM, na GNT e no podcasts Mamilos e Sexoterapia (aqui em Universa).

Sobre o blog

Um espaço para trocar estratégias para sobreviver à solteirice e aos relacionamentos em tempos de likes. Quando vale ter uma DR e quando podemos deixar morrer no silêncio? O que significa esse emoji? Assistir stories significa? Experts em solteirice e ótimos psicólogos de boteco, André e Carol compartilham dilemas reais de solteiros e mapeiam possíveis caminhos para não perder a sanidade mental nessa era de contatinhos.